Órfãos da pandemia: filhos que perderam pais para a Covid-19 contam como ressignificaram a vida


Especialista esclarece que a pandemia alterou a forma que o luto é vivido e diz que há fatores que deixaram o processo mais difícil: impossibilidade de visitar familiares hospitalizados, alterações nos rituais fúnebres e cerimônias de despedida, isolamento físico e falta de apoio social. Idosos, de 84 e 88 anos, faleceram por causa da Covid-19
Arquivo pessoal
Despedidas sem velório. O último adeus, no hospital, sem ninguém ao lado. Pouco tempo dos primeiros sintomas à morte. Essas são marcas deixadas pela pandemia de Covid-19.
No Brasil, os casos confirmados da doença ultrapassam a marca de 38 milhões. Já os óbitos chegam a 712 mil. Esses números falam sobre epidemiologia, mas também sobre vidas interrompidas e famílias marcadas pela partida de alguém querido.
O g1 conversou com moradores de Montes Claros que perderam mães, pais ou ambos e recomeçaram, cada um à sua maneira. Eles contam como ressignificaram a perda dos seus entes.
‘É ajudando o outro que eu tenho me curado’
No caso da agente comunitária de saúde Josimeire Freitas, recomeçar após perder o pai, de 84 anos, só foi possível porque ela entendeu que é importante ao próximo. Josi, como é carinhosamente chamada por amigos, coordena há 10 anos um projeto social que acolhe mais de 100 jovens em situação de vulnerabilidade social.
“Eu tive o privilégio de ter o meu pai durante tantos anos, mas aqui há crianças e adolescentes que os pais morreram e muitos que nunca saberão quem são os pais porque foram abandonados. Todos que são cuidados pelo projeto precisam de mim. Meu pai deixou memórias boas, quanto aos outros, quais as memórias boas deles? É minha missão ajudar a criá-las. Eu preciso fazer a diferença na vida de quem acredita em mim. E isso é maior que a morte. É ajudando o outro que eu tenho me curado”.
Ela relembra que o pai inicialmente manifestou sintomas leves do coronavírus. Ele chegou a ficar internado e morreu no hospital, em maio de 2021. Não teve velório e o sepultamento foi restrito.
“Foi uma despedida incompleta. Meu pai gostava de andar cheiroso e sempre bem arrumado. E pensar que, na hora da morte, ele foi colocado em um saco, sem roupas, sem flores. Eu queria vê-lo, tocá-lo. Eu cheguei a questionar se realmente era meu pai que estava dentro do caixão. Essas coisas ficaram na minha cabeça e aumentavam a dor. Eu decidi, então, descansar em Deus e aceitar a vontade dele.”
Josi e o pai
Arquivo pessoal
A mãe de Josi morreu seis meses antes em decorrência de alzheimer. Quando o pai se foi, ela chegou a duvidar que suportaria, mais uma vez, tanto sofrimento.
“Eu sou uma pessoa completamente diferente. A vida, hoje, tem muito mais valor. Cada segundo vale ouro. Meu pai entendia isso bem, tanto que descontente por saber escrever só o próprio nome voltou a estudar aos 60 anos. Ele queria fazer faculdade, acredita? Sabia que a vida é preciosa demais. Sou forte, mas sinto falta dele, claro. Até hoje não consigo comer biscoito doce frito porque ele gostava muito. Vou à padaria e deixo o biscoito lá. Mesmo, porém, sem entender os propósitos de Deus eu não deixo de ser grata. Eu sei que, em breve, vamos todos nos reencontrar. Enquanto isso, cumpro os meus propósitos.”
‘Guardo uma certeza: ela foi feliz’
Ieda Rosana Freitas e Andrea Rosane Freitas perderam aquela que elas consideravam o alicerce da família: a mãe, Andrelina de Jesus Freitas. As irmãs contam que era ela quem sorria primeiro quando uma piada era contada, era ela quem não tinha vergonha de falar sobre ambições e era ela quem fazia tudo pelos cinco filhos. Os sintomas da doença chegaram de forma leve, mas se agravaram, causando a morte da idosa, que tinha 69 anos.
“Nós acreditamos até o fim que ela ficaria bem e voltaria para casa. Eu e minha irmã estávamos na igreja e o telefone tocou. Era do hospital. Ela tinha morrido. Comecei a chorar e a questionar. E a minha fé? E o milagre que pedi? No dia do meu aniversário ela estava hospitalizada. Fiz uma oração e pedi de presente um abraço de mãe. Quando pedi, senti um calafrio no corpo inteiro. Hoje, entendo que era Deus dizendo que não poderia atender ao meu pedido, pois os planos dele eram outros. A metade do meu coração foi arrancada sem anestesia. Nos primeiros meses pós-morte me sentia aérea. Eu demorei a entender que a morte não tem volta”, conta Ieda.
A partida repentina de Andrelina deixou um vazio na casa onde as irmãs moram. Para amenizar a saudade, elas relembram os momentos felizes que passaram juntas.
“Nós tínhamos muita vontade de conhecer Gramado. Corremos atrás, juntamos dinheiro, dividimos as despesas e conseguimos viajar. Ela ficou feliz demais ao realizar esse sonho e acalma o coração saber que vivemos momentos alegres. Minha mãe sempre falava que sentia medo de morrer sem andar de avião. E ela pôde andar de avião justamente nessa viagem. Perguntei: ‘Gostou, mãe, de andar de avião?’. E ela falou: ‘Nossa, é bom demais, nem fiquei com medo’. Guardo uma certeza: ela foi feliz”, diz Andrea.
Andrelina com as filhas em Gramado
Arquivo pessoal
Andrelina deixou cinco filhos, que permanecem ainda mais unidos para conseguirem seguir em frente.
“A gente aprende a conviver com a ferida, com a dor. A gente aprende a estancar o sangramento para não morrer. Nada ou ninguém preenchem o lugar dela. Eu entendi que precisava continuar. E nós, irmãos, buscamos um apoiar o outro. Graças a Deus somos bem unidos. Com fé, com amor e com terapia a vida, às vezes tão cruel e violenta, precisa continuar”, desabafa Andrea.
‘Eu escolhi me apegar à fé’
Alexandre Júnior Ferreira Rocha, radialista, perdeu o pai, a mãe e o irmão em um mês. O pai, de 88, morreu em casa. Já a mãe, de 84, e o irmão, de 64, chegaram a ficar internados, no mesmo quarto de hospital, onde faleceram.
“Quando meu irmão morreu eu já estava calejado. Não tive tempo de ter saudade, de processar o luto. Foi tudo muito rápido. Meu pai estava relativamente bem e queria ir à missa quando a quarentena dele acabasse. Não deu tempo e ele partiu. E minha mãe partiu. E meu irmão também. Uma morte atrás da outra. Foi tudo muito rápido. Uma rapidez assustadora.”
Três anos e seis meses depois, Alexandre consegue olhar para o passado com tranquilidade.
“Eu sabia que meus pais estavam com idades avançadas e não viveriam mais 20, 30, 40 anos. Na pandemia, fiz questão de visitá-los, de estar presente, respeitando as regras de distanciamento. Eu fiz o que podia. Hoje, três anos depois, vejo que o tempo ajudou a cicatrizar as dores. Fui a um casamento dias atrás e pela primeira vez não senti tanto a falta dos meus pais. Saudade, claro, sempre há. Mas eu consegui estar realmente presente no evento, como a vida exige.”
Católico, Alexandre se agarra a fé para seguir em frente.
“Diante da gravidade da doença, o que eu poderia fazer? Muito pouco. Hoje, agradeço a Deus porque pude estar com eles durante o tempo que foi determinado. Eu escolhi me apegar à fé. Entendo que esta vida, a que vivemos agora, não é o fim. Estamos aqui de passagem. Penso que aquilo que está na Bíblia é muito real: não cai uma folha da árvore sem que Deus permita. Meus pais e irmão se foram e eu olho para a morte deles com naturalidade, o que não significa frieza. Eu não falo que Deus foi ruim. Ele fez o que tinha de ser feito.”
Alexandre perdeu o irmão e os pais (foto do casal que abre a reportagem)
Arquivo pessoal
Luto diferente
Pamela Sola é psicóloga e concluiu o mestrado na Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto. Na pesquisa que desenvolveu junto ao LUTE (grupo de estudos e intervenções em lutos e terminalidades), investigou fatores que tornaram as reações relacionadas à perda diferentes durante a pandemia. Entre eles estão: impossibilidade de visitar familiares hospitalizados, alterações nos rituais fúnebres e cerimônias de despedida, isolamento físico e falta de apoio social.
“A pandemia alterou a forma de lidarmos com o luto, uma vez que foram muitas mortes em pouco tempo. No caso da Covid-19, as pessoas já se preparavam, de forma mais intensa, para a possibilidade de perda. O contexto impôs muitas restrições. As pessoas foram obrigadas a viver o luto, principalmente nos dois primeiros anos, solitárias, o que aumentou o sofrimento. A tecnologia ajudou, claro, mas não supriu o contato pessoal. Outro ponto diz respeito aos rituais de despedida. Muitas pessoas foram enterradas em caixões lacrados e os familiares não puderam vê-las pela última vez. Trata-se de algo que dificultou a assimilação da perda. Você pode não aceitar a morte, mas precisa reconhecer que ela aconteceu. A pandemia, portanto, interferiu na compreensão da realidade.”
Ela pontua que o luto é vivido de diferentes formas, considerando, entre outros aspectos, as características pessoais, os aspectos culturais e as crenças religiosas. A pesquisadora destaca, além disso, que o luto pode ser prolongado, isto é, as reações durarem tempo superior ao esperado.
“A morte acontece, a pessoa precisa lidar com a perda e inicia-se o processo de luto. Neste instante, são esperadas reações emocionais, comportamentais e físicas, como raiva, reclusão e aumento ou diminuição de apetite. Essas reações tendem a ser mais intensas no pós-morte e a ideia é que, aos poucos, a vida ganhe equilíbrio, ritmo. Às vezes, a pessoa pode passar muito tempo com dificuldades acentuadas em retomar atividades relacionadas à convivência familiar, às relações sociais, ao trabalho, aos estudos. O luto prolongado, então, dá-se quando as reações persistem por mais de um ano, no caso de adultos, e mais de seis meses, no caso de crianças. O critério tempo, porém, é muito relativo. Ele ajuda a nortear, mas não é taxativo”, esclarece.
Uma dose de compaixão e empatia
“Nós, seres humanos, somos julgadores por natureza.” Quem fala é o psiquiatra Bruno Brandão. Ele explica que, ao passo que julgamos, diminuímos incertezas.
“Você acorda e questiona se vai chover, se vai fazer frio, se vai fazer calor. O cérebro passa a elaborar cálculos de forma automática. Com base, então, em vários fatores, uma decisão é tomada: usar blusa sem manga. Isso significa redução de incerteza. O que era dúvida virou fato: usar blusa sem manga. Você vê alguém na rua vestido mais informalmente e logo pensa: ‘Vai me fazer mal’. O sujeito é colocado como suspeito simplesmente pela roupa que veste.”
Bruno pondera que muitos julgam as reações à morte dos outros considerando as próprias reações.
“Eu vejo um rapaz que perdeu o pai há três anos e até hoje não superou. Logo penso: ‘Eu perdi o meu pai há um ano e já superei, faço de tudo, não faz sentido ele chorar ainda. Por que ele não superou?’. Eu não posso medir o outro com a minha régua. O problema, importante pontuar, não está nesse julgamento automático. O problema está em não corrigi-lo.”
A correção, esclarece o especialista, envolve inteligência emocional. “Também considera empatia e compaixão, termos que significam: sentir o que o outro sente e vontade de ajudar o outro, respectivamente. Com esse trio, o ser humano consegue dizer ao próximo que sofre que há saídas e que buscar ajuda é, sim, coisa de gente feita de carne e osso.”
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