Andreas Kisser (Sepultura) revela como influências femininas moldaram sua trajetória

Andreas Kisser, do Sepultura, com a mãe Anna Maria

Para encerrar as reflexões no mês das mulheres nesta coluna eu conversei com Andreas Kisser. Sim, um cara!

Mas por que um cara? Porque em tempos onde o reconhecimento de temas como economia dos cuidados e o próprio boom de bandas com lideranças femininas têm ganhado espaço, acho importante incluir outras perspectivas nessa conversa para continuarmos avançando. Se os homens não fizerem parte do diálogo, estaremos deixando de envolvê-los na solução de coisas que necessariamente passam por eles.

Finalizações se tornam momentos de reflexão e análise da nossa história e, com a despedida do Sepultura, faz sentido realizar esse exercício com um dos mais bem-sucedidos guitarristas da história do metal revisando o papel das mulheres em sua jornada.

Sepultura, banda vinda de uma matriarca, foi historicamente capitaneada por empresárias e ainda passa pela casa de Andreas, onde a esposa teve papel fundamental. Há a filha, que segue no campo artístico. Houve a mãe, a avó e a professora de violão. E hoje uma trupe grande de mulheres que continua a tocar o barco rumo à última viagem da banda, que ainda não tem porto para atracar mas passará pelo lançamento de um EP com músicas inéditas, incluindo uma balada, e que contará com registros oficiais do baterista Greyson Nekrutman.

As mulheres no início da jornada

Um violão atravessa o oceano rumo a Santo André, São Paulo, na bagagem de uma eslovena refugiada do pós-guerra. Era o fim dos anos 1940 e a dureza dos tempos cortava o ar. Aquele pedaço de madeira com cordas, sem utilidade prática para quem precisava apenas sobreviver, suspirava que dias mais poéticos haveriam de existir – não se sabia como.

Era o primeiro violão de Andreas Kisser chegando pelas mãos da avó. Era o objeto que definitivamente guardava o futuro promissor que aquela mulher veio buscar para a família no Brasil. 

Por acaso ou pelo destino, é nele que Andreas começa a trilhar o caminho que o levou ao reconhecimento mundial na música pesada. Teria sido o objeto uma espécie de incenso, ouro e mirra ofertado em seu berço por seus ancestrais, como ele conta em conversa com a coluna:

“Minha avó veio depois da Segunda Guerra Mundial, em 1949, da Europa para Santo André começar uma vida nova, e trouxe esse violão – o mesmo que comecei a tocar e que guardo com muito carinho. Desde pequeno, eu já a via tocar músicas do folclore esloveno, alemão e austríaco, com três ou quatro acordes”.

A mãe, Anna Maria, que chegou menina ao Brasil, com cinco anos, tocava um pouco de acordeão e mantinha em casa uma coleção eclética de discos.

“Minha mãe tinha discos da Clara Nunes, Martinho da Vila, Beatles – lembro que o Help! estava lá –, e também coletâneas de trilha sonora de novela, que foi onde ouvi Genesis pela primeira vez.”

A iniciação musical se completa com Denise, primeira professora de violão de Andreas, vizinha da avó, fechando a tríade feminina que o iniciou na canção.

“Denise (a primeira professora de violão) foi uma grande mulher na minha vida. Os irmãos dela tinham uma banda de rock, e eu estudava no quarto onde eles ensaiavam, cheio de amplificadores. Foi ali que aprendi os primeiros acordes da música popular brasileira e comecei a dar meus primeiros passos na música”.

A mãe Anna Maria (Reprodução Instagram)

Patrícia: os pés no chão de Andreas

Em um cenário onde ser “só mãe” muitas vezes é visto como uma derrota pessoal, Patrícia Kisser, que foi esposa de Andreas por três décadas, desafiou essa visão. O apelido “Mãetricia” refletia sua essência e a mostrava como uma força vital para a família e amigos, incluindo fãs do Sepultura.

Ela não rejeitava a alcunha e se apresentava como “uma verdadeira mãe” para todos, bem como o ditado, transformando o arquétipo materno em uma celebração de grandeza. Organizando turnês, gerenciando as finanças e ajudando a planejar o futuro de Andreas, Patrícia se tornou essencial para a estabilidade do guitarrista.

“Eu era muito idealista e pouco realista”, ele admite. “Patrícia me ensinou a importância de pensar no longo prazo.”

Quando se conheceram nos anos 90, o Sepultura começava a conquistar o mundo e Patrícia ingressou no Heavy Metal, um universo onde era estrangeira. Morando nos Estados Unidos, ela não pôde seguir sua carreira na medicina, mas encontrou um novo propósito ao assumir papel de gestora ao lado de Andreas e também para outros artistas como Sérgio Brito (Titãs) e Marina de La Riva.

“Pensar em aposentadoria, organizar a parte financeira, valorizar o nome, eu era sempre alheio a isso. Realmente Patrícia me deu muita segurança ao se preocupar com coisas que eu não me preocupava. Eu só queria tocar guitarra. Hoje, eu posso dizer que a minha percepção das coisas mudou muito através do que ela me mostrou”.

Patrícia partiu há três anos por câncer, mas continua a ser parte fundamental das escolhas e da história que Andreas segue escrevendo no Movimento Mãetricia, criado por ele para defender o direito à morte digna e assistida no Brasil. A luta que foi dela agora é dele – uma missão para quebrar tabus e trazer à tona a necessidade de encarar o fim da vida com outra perspectiva. Nesta passagem, ele lembra da importância das mulheres que estiveram ao seu lado, como a chefe paliativista do hospital. 

Desde 2022, o Patfest – evento beneficente que reúne músicos e artistas – celebra a vida de Patrícia, arrecadando fundos para apoiar projetos de cuidados paliativos a pessoas em situação de vulnerabilidade social. No Brasil, a eutanásia é criminalizada e o país é considerado o terceiro pior para morrer no mundo, produzindo um cenário de mortes dolorosas e doenças não diagnosticadas.

Paternidade na estrada

Se hoje questionamos o conceito de família, na casa dos Kisser essa questão é superada, pois eles já vivem de forma não convencional há mais tempo do que a própria discussão. 

Vivendo longe de casa boa parte do tempo, Andreas teve de buscar respostas autênticas sobre o significado de família, pertencimento e paternidade para não cair nas garras de um discurso moralista que o alienasse de si mesmo.

“A presença física não necessariamente indica que as pessoas estão perto ou que realmente se conhecem. É importante não cair nessas armadilhas, de achar que a gente é ‘uma coisa errada’ por ser como é”.

Ele defende que a verdadeira base da família é o amor e o respeito mútuo, e não as expectativas sociais sobre o que é ser um “bom pai” ou “bom filho”. Para ele, presença se mede por parâmetros como afinidade, cumplicidade, amizade e intimidade, sendo mais sobre conexão emocional do que dividir o mesmo espaço. 

Ele observa que qualquer família tem os seus sacrifícios e não acredita em “receita de bolo” para os arranjos familiares; diz que sempre fez o melhor com o que tinha, ampliando sua visão sobre as relações humanas ao viver fora do Brasil e aprender novas culturas.

Andreas compartilha que, apesar das dificuldades concretas impostas pelo afastamento físico, sua família sempre se manteve unida, e grande parte dessa cola veio do respeito às individualidades.

Nesse aspecto, ele relembra momentos desafiadores, como quando seu filho Yohan enfrentou sérios problemas de saúde e uma cirurgia ainda bebê, enquanto ele estava no Japão em turnê, ou quando perdeu o primeiro aniversário da filha Giulia. Ele destaca a força de sua esposa, que assumiu responsabilidades difíceis e manteve a harmonia familiar.

Como muitos sabem, Yohan Kisser seguiu o caminho musical e lançou recentemente seu disco de estreia The Rivals are Fed and Rested, onde paga tributo à mãe Patrícia na ode “Membro Fantasma”, música que reconhece a contribuição dela em sua vida. Multitalentoso, Yohan é pintor e ilustrou a capa do próprio álbum com três autorretratos feitos com tinta acrílica sobre tela e fotografados por Marcos Hermes.

Continua após o vídeo e a foto

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Vânia, a mãe do Sepultura

Na imponente mesa de jantar de uma mansão imaginária, a cabeceira certamente pertence a Vânia Cavalera. Mãe de Max e Iggor, fundadores do Sepultura, ela é também a matriarca da banda. Seu apoio incondicional aos filhos e sua acolhida a Paulo Xisto e Andreas foram determinantes para o sucesso do grupo. Aliás, o suporte familiar que todos receberam pode tê-los poupado de anos no divã. Afinal, nada como a bendição dos pais — especialmente das mães — sobre as crias.

Os pais de Paulo e Andreas também foram peças-chave nessa trajetória. Nildete, Seu Paulo, Anna Maria e Siegfried ajudaram a construir um ambiente onde os meninos puderam florescer como músicos sem receios. Os pais de Paulo, por exemplo, cederam parte da casa para ser estúdio de ensaio. Mas foi Vânia, que faleceu em 2023, aos 80 anos, quem abriu caminho quando tudo era mato e segurou a bronca e narizes torcidos enquanto mãe solteira, viúva e que não seguia exatamente a risca da época sobre criação de filhos.

Na virada dos anos 70 para os 80, sua postura progressista e liberal permitiu que os meninos sonhassem grande—e, mais importante, que pudessem transformar esse sonho em realidade. “A Vânia se dedicou cem por cento ao que os filhos queriam”, conta Andreas. Quando chegou a Belo Horizonte, foi acolhido na casa dos Cavalera, onde viveu por dois anos, recebendo todo o suporte necessário. Sem seu apoio incondicional, o Sepultura talvez nunca tivesse chegado onde chegou.

“Obviamente, a Vânia foi quem deu todo aquele suporte inicial para que o resto pudesse acontecer”.

Vânia Cavalera (Reprodução Instagram)

O efeito “Yoko Ono” no Sepultura

O Sepultura sempre teve mulheres na administração, com Glória e Mônica Cavalera à frente da gestão da banda—algo raro no metal.

Embora os desafios enfrentados não tivessem relação direta com gênero, elas sofreram o chamado “efeito Yoko Ono”, a percepção de que mulheres desestabilizam espaços masculinos. Evas que acabam com paraísos particulares. Em um meio historicamente dominado por homens, a presença de lideranças femininas nem sempre foi bem aceita. Como Andreas vê essa questão no metal?

“Nunca tive problema com isso. O Sepultura nunca teve medo disso. Cito as grandes empresárias Sharon Osbourne, do Ozzy, Wendy Dio, do Ronnie James Dio, a Glória Cavalera, que trabalhou com a gente, a Mônica também. Mulheres são fundamentais e o metal nunca teve medo disso”.

Ele explica que enxerga o metal como um ambiente aberto e inclusivo e ressalta a crescente presença de mulheres virtuosas nas grandes bandas brasileiras, que têm inspirado jovens a seguir o caminho da música e ajudado a criar uma cultura mais representativa.

Herança criativa para a filha

Andreas Kisser é pai de Giulia, uma mulher que, assim como ele, busca no campo artístico sua expressão mais autêntica.

Giulia é maquiadora e, ao longo de sua carreira, teve a oportunidade de produzir artistas, incluindo o Sepultura, em uma apresentação histórica no Rock in Rio. Hoje, morando no exterior, ela tem construído a vida profissional e seu pai sabe que o caminho ainda está repleto de desafios e vitórias a conquistar.

Para Kisser, o respeito é a chave para a motivação e o sucesso de sua filha, e ele acredita que, apesar das incertezas e das dificuldades que o mundo artístico impõe, ela encontrará a força necessária para seguir em frente, assim como ele fez ao longo dos anos.

Em uma reflexão mais ampla, Kisser também falou sobre as mulheres e os desafios que ainda enfrentam na sociedade, como a desigualdade salarial e a falta de respeito. No universo do heavy metal, ele observa uma liberdade de expressão rara, onde, em sua opinião, não há tantas imposições de idade ou imagem que são comuns em outros contextos. Para ele, a comunidade do metal se destaca pela sua natureza democrática e respeitosa, ainda que enfrente, sim, a tarefa de continuar avançando.

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Família Kisser (Reprodução Instagram)

Mulheres no Sepultura

Andreas reflete sobre o papel crescente das mulheres no cenário musical, destacando com orgulho a presença feminina na equipe do Sepultura.

“As mulheres estão cada vez mais presentes, né? E isso é ótimo! Na nossa equipe, por exemplo, temos a stage manager, a gerente de produção, a contadora, a assessora de imprensa, a coordenadora de merchandising… Todas mulheres sensacionais, cada uma com seu jeito, mas sempre com planejamento e foco”.

“Hoje temos consciência do que é business e do que é amizade. Essa mistura já atrapalhou muito a gente na carreira, durante muitos anos. Mas nos últimos dez anos, finalmente conseguimos organizar tudo de uma forma mais profissional e menos emotiva”, conclui e reconhece que boa parte das lições vieram pela contribuição de mulheres.

Ele finaliza com otimismo, destacando a importância da diversidade no time da banda e o contínuo crescimento dessa dinâmica.

“Temos grandes mulheres no nosso time e isso só tende a continuar.”

No álbum Quadra, o Sepultura escalou pela primeira vez uma mulher para os vocais: Emmily Barreto (Far From Alaska / Ego Kill Talent) e o resultado foi “Fear, Pain, Chaos, Suffering”.

Mulheres, vida e inspirações

Para finalizar o papo, Andreas compartilha uma reflexão profunda sobre a presença fundamental das mulheres em sua vida, não apenas no campo profissional, mas também no pessoal, como força vital.

“Não teria nem vida se não fosse pela mulher! Não é nem carreira, é tudo! É vida!”, diz, apontando para a conexão vital entre homens e mulheres, que transcende a profissão e se expande para todos os aspectos da existência.

O músico compartilha sua admiração por mulheres inspiradoras, como Fernanda Torres, atriz recém chegada do Oscar, destacando sua autenticidade e inteligência. Ele também menciona a violonista francesa Ida Presti, pioneira no violão clássico, e Chiquinha Gonzaga, cuja coragem e talento tiveram grande impacto no chorinho, um estilo que ele aprecia profundamente. Andreas destaca como essas mulheres desafiaram barreiras e deixaram legados significativos na música e nas artes, servindo de inspiração. E não deixa de destacar as mulheres da vida prática, como suas nutricionista e oftalmologista!

Pai, irmão, filho, namorado, marido, colega de trabalho e ídolo, Andreas é diversos personagens para variadas mulheres e segue firme no caminho do autoconhecimento em busca de ser um ser humano melhor para si e para sua comunidade.

“Acho que estamos juntos e temos que nos apoiar uns aos outros, independente do gênero”, reflete, ressaltando que as diferenças entre as pessoas, longe de nos afastar, têm o poder de nos unir, uma lição de dentro de casa que ele divide com o mundo.

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