Mãe de menina negra de 3 anos retira criança da creche após episódios de exclusão no Rio: ‘Não a deixavam brincar por ser preta’


A criança relatou para a mãe que as colegas, que também têm 3 anos, não gostavam do cabelo dela ‘por ser duro’, e que a professora tinha notado a dinâmica de exclusão. Creche diz que tem ‘compromisso com um ambiente escolar inclusivo’. Mãe de menina negra de 3 anos retira criança da creche após episódios de exclusão no Rio
Reprodução
A mãe de uma menina negra de 3 anos conta que retirou a filha da creche Centro Cultural Educar, unidade Abolição, na Zona Norte do Rio, após episódios de exclusão que a criança sofreu em sala de aula. A menina contou para a mãe que “as coleguinhas não a deixavam brincar por ser preta”, conforme relata Ahyla Vitória.
Segundo a mãe da criança, a situação veio à tona nesta quinta-feira (20) enquanto Ahyla penteava o cabelo da menina para a aula. A mãe estranhou o pedido da criança de que prendesse os fios, já que a criança costuma usá-los soltos.
Ao questionar para a menina o motivo do pedido, a mãe teve como resposta que as amiguinhas “achariam feio” e “chamariam o cabelo dela de duro”.
Depois de entender que a situação se tratava de racismo – e pior, na primeira infância – a mãe tentou resolver a situação com a escola e soube que a professora estava ciente e que tinha chamado o responsável de uma criança para conversar.
Ahyla alega que a unidade sabia da situação, mas não a comunicou dos episódios. A instituição diverge e afirma que soube da situação através da mãe (veja mais adiante na reportagem).
“São negligentes, só fiquei sabendo após relato da minha própria filha, porque chegou ao ponto da minha filha dizer, nas palavras da professora: ‘eu sei que sou preta, mas posso brincar com vocês?’. Imagina a dor dela tentando ser aceita”, desabafa a Ahyla .
“Racistas não passarão, ninguém merece passar por isso. É muito desumano”, escreveu ela nas redes sociais.
Ao g1, a mãe disse que a situação começou antes do carnaval.
“Foi uma surpresa pra mim que a professora disse que isso já estava acontecendo, que essa situação de racismo já estava demais. E eu questionei: ‘Como vocês não me contam que isso está acontecendo com a minha filha?’. Me pareceu descaso”, conta Ahyla.
A especialista em neuropsicologia e pedagogia com atendimento de crianças e adolescentes Beatriz Brandão explicou ao g1 que os responsáveis das crianças vítimas precisam ter ciência.
“Eles têm o direito de saber que seu filho foi alvo de uma violência, mesmo que tenha vindo de outra criança. E precisam sentir que a escola cuidou da situação com seriedade. Já com os pais da criança autora, o tom é de orientação. Não adianta ir pra cima com raiva: o foco tem que ser refletir com a família sobre o que essa criança tá absorvendo e como todos podem contribuir pra um ambiente mais respeitoso”, afirma Brandão.
Sobre a saída da creche, a criança reagiu bem e animada, segundo a mãe, e chegou a questionar se não precisaria mais estar com as meninas que a excluíram.
O g1 procurou a creche na quinta-feira (20), que informou que Ahyla esteve na escola em reunião com a professora e a direção da instituição.
“Deve restar claro que a responsável pela nossa aluna somente hoje nos trouxe os fatos alegados e divulgados nas redes sociais. O Centro Cultural EDUCAR informa que está apurando, com seriedade e cautela. Trata-se de relato envolvendo duas crianças de apenas 3 anos”, afirma o posicionamento.
“Reforçamos nosso compromisso com um ambiente escolar inclusivo, pautado nos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assegura o respeito e a proteção de todas as crianças. Lamentamos a divulgação precipitada de informações em redes sociais que não refletem a realidade da instituição”, conclui.
Nesta sexta, o g1 voltou a procurar a creche, após Ahyla dizer que a instituição já tinha ciência da situação, e teve como resposta a seguinte nota:
“Temos a ata registrada com os pais na data de ontem, bem como imagens da mãe conversando com a professora no mesmo dia. Lamentamos que estejam baseando suas alegações em informações sem qualquer comprovação. Reiteramos que a situação envolve duas crianças de apenas três anos e deve ser tratada com a devida responsabilidade, o que já está sendo feito em conjunto com os órgãos competentes”.
‘Educação antirracista começa cedo’, diz psicóloga
A psicóloga Beatriz Brandão explicou ao g1 que, aos 3 anos, a criança ainda está em formação e aprende por repetição e imitação.
“A criança ainda está em formação moral, emocional e cognitiva. Ela repete falas e comportamentos do que vê nos adultos, nos desenhos, nos ambientes por onde passa”, afirma a psicóloga.
O ideal, em casos assim, não é culpabilizar a criança autora, mas sim educar e “explicar que o que foi dito machuca” e que “todos merecem ser tratados com dignidade”.
“Educação antirracista começa cedo, e o adulto precisa ter coragem de assumir esse papel sem terceirizar para o ‘tempo ensinar’”, continua a especialista.
A coordenadora de diversidade e criticidade racial na Educação Joana D’arc explica que a educação antirracista precisa estar alinhada com todo o calendário letivo, além de ser um esforço de toda sociedade e não somente da escola.
“É fundamental que o trabalho com relações étnico-raciais esteja presente ao longo de todo o ano letivo, e não apenas em datas específicas, como 13 de maio e 20 de novembro. Acreditamos que o papel da escola é não apenas transmitir conhecimento, mas também criar um ambiente seguro e respeitoso para todas as crianças”, afirma a especialista, que atua na Escola Sá Pereira.
Em ambientes pedagógicos e na vida pessoal, a abordagem que deve ser adotada é educar sem expor e acolher as vítimas sem diminuir a situação.
“A criança vítima precisa ser protegida, ouvida e acolhida. E a criança que teve a atitude racista precisa entender o impacto do que disse. Isso não se resolve com castigo ou bronca pública. Se resolve com conversa, escuta, construção de empatia”, afirma Brandão.
Livros, rodas de conversa e personagens negros
“Para as crianças pequenas, a literatura infantil é um excelente recurso, pois hoje contamos com um vasto acervo de autores renomados que abordam o tema de maneira sensível e acessível. Além disso, estratégias como rodas de conversa, atividades lúdicas e representatividade no material didático são fundamentais para que a escola cumpra seu papel na construção de uma sociedade mais justa e igualitária”, endossa Joana.
Um acervo composto por bonecas negras e livros com personagens negros como protagonistas também são ferramentas essenciais para reforçar a representatividade e a valorização da identidade racial desde a infância, explica Joana.
Episódios racistas podem ser ressignificados em campanhas educativas e até permanentes nos colégios. Mas as situações não podem acontecer sem que um posicionamento acolhedor seja tomado – pelo bem do psicológico dos pequenos.
“Crianças que sofrem racismo podem desenvolver baixa autoestima, vergonha de si mesmas, sensação de não pertencimento, medo de se expressar. E isso, claro, impacta diretamente o aprendizado”, destaca a psicóloga.
Os danos psicológicos retiram a confiança das crianças no seu próprio processo de aprendizagem, conforme explica a especialista.
“Se ela se sente excluída, inferiorizada, silenciada… como é que ela vai se concentrar em aprender a ler, por exemplo? O racismo não é ‘algo que passa’. Ele pode deixar marcas profundas, inclusive na construção da identidade dessa criança”, complementa.
“Por isso o acolhimento precisa ser imediato e o trabalho contínuo. Não é só apagar o incêndio, é impedir que ele volte a acontecer”, define Brandão.
Entenda o que é racismo estrutural
Adicionar aos favoritos o Link permanente.