Interior da Bahia se destaca como berço da nova geração de trappers; entenda o fenômeno

Interior da Bahia se destaca como berço da nova geração de trappers; entenda o fenômeno
Crédito: Alisson Gabriel

Por Rian Damasceno

Na guerra pelo trono do trap, uma figura da realeza tem chamado atenção. Com 24 anos, a cantora Duquesa – nascida Jeysa Ribeiro – é o principal nome feminino do gênero musical atualmente.

O show de abertura da turnê do seu álbum Taurus vol.2 é uma prova disso. A apresentação ocorreu na casa de eventos Audio, em São Paulo, em 17 de agosto. O local, com capacidade para mais de 3 mil pessoas, lotou.

Duquesa, porém, tem pouco a ver com São Paulo. A cantora é de Feira de Santana, do interior da Bahia, a 100 quilômetros de Salvador. O município se tornou, recentemente, um polo de produção de trap, mas não é a única cidade do interior da Bahia que se destaca por ser um gerador de trappers:

  • O município de Jacobina, no extremo norte da Chapada Diamantina, a 330 quilômetros de Salvador, é o berço de Teto, que faz parte do selo 30PRAUM, de Matuê.
  • Ryu, The Runner é de Vitória da Conquista e co-autor da música “Qual é o seu desejo?”, que chegou ao primeiro lugar do ranking das músicas mais ouvidas no Spotify Brasil.
  • Brocasito é de Juazeiro, cidade do norte da Bahia. Suas faixas acumulam mais de 10 milhões de acessos nas plataformas de streaming.
  • David Sá Duarte, conhecido como Jovem Dex, é feirense, assim como Duquesa.

Descobrir que trappers são do interior pode causar surpresa. Alysson Garcia, professor de história na Universidade Federal de Goiás e pesquisador de hip-hop, explica o porquê:

“A indústria cultural está concentrada no Sudeste. Isso faz com que pareça exótica a produção de uma musicalidade futurista no interior”.

O que é Trap?

O trap é um subgênero – ou melhor, o filho rebelde – do rap. Se na Bíblia o sucesso é
garantido para quem honra o pai, na história do trap, o texto sagrado não se confirma. Apesar de ter semelhanças com o rap, o trap deixa as batidas do hip-hop e incorpora o uso de sintetizadores, moduladores de voz (AutoTune) e influências da música eletrônica.

O subgênero nasceu em 1990, em Atlanta, nos EUA, e migrou para o Brasil em 2010. Sua popularização ocorreu por meio de cenas locais, segundo Tamiris Coutinho, pesquisadora de trap na Universidade Federal Fluminense.

Aos poucos, o ritmo ganhou espaço no mercado musical brasileiro, até que, em junho de 2023, desbancou o sertanejo como gênero mais ouvido na playlist Top Brasil do Spotify, que reúne as músicas mais tocadas no país.

No interior da Bahia

A ascensão do trap aconteceu nos centros e no interior quase ao mesmo tempo, explica
Alysson: “Esse desenvolvimento depende de equipamentos técnicos e tecnológicos da indústria musical, e a apropriação deles ocorreu simultaneamente em diferentes regiões.”

O rapper ErriVance acompanhou de perto a evolução do trap no interior da Bahia. Natural de Piritiba, a 321 quilômetros de Salvador, Roger Vance faz pós-graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde participa de rodas de rima. “Depois de 2014 foi quando aconteceu o boom do rap e do trap na Bahia”, conta.

Os motivos por trás disso são as rodas de rimas locais e o lançamento da música “Sulicídio”, dos rappers Baco Exu do Blues e Diomedes Chinaski, em 2016, que serviu como inspiração. Na canção, os artistas falam sobre a cena nordestina e criticam rappers do eixo Rio-São Paulo.

Alysson também afirma que, no interior do Brasil, a produção de trap fica restrita a algo mais caseiro: Aqueles que se apropriam do ritmo, inserem suas produções na internet, seja no YouTube – com videoclipes de baixo orçamento –, seja nas plataformas de streaming. A maior dificuldade, no entanto, está em furar a bolha dessa estrutura econômica”.

“Eles estão chateados porque o baiano manda em SP”

Ryu, The Runner, nascido em Vitória da Conquista, município sudoeste do estado baiano, é um dos trappers que conseguiram superar as barreiras e conquistar o sucesso.

O artista Ryan Gonçalves, de 22 anos, não sabe de onde veio “Ryu”, mas “The Runner” (“o corredor”, em tradução livre para português) surgiu porque precisou de velocidade para equilibrar estudos, trabalho, namoro e música.

Em Vitória da Conquista, Ryu morou no conjunto periférico Urbis IV, sigla para a empresa Habitação e Urbanização da Bahia S.A, responsável pela implementação de casas populares em cidades baianas, e no Bairro Brasil.

A comunidade Urbis IV tem casas baixas, ruas de paralelepípedos e um canal de drenagem, apelidado pelos moradores de “valetão”. A construção foi realizada para resolver problemas de enxurradas e alagamentos, mas se tornou sinônimo de acúmulo de lixo, esgoto a céu aberto e mau cheiro.

Conversamos com Ryu por vídeo chamada. O cantor, que já afirmou ser tímido, não abriu a câmera. Confira a entrevista na íntegra logo abaixo!

Entrevista com Ryu, The Runner

TMDQA!: Entre os 7 e 8 anos, você saiu de Vitória da Conquista. Por quê?

Ryu: Minha mãe teve alguns problemas com meu pai e queria sair de lá. Ela não conhecia
ninguém e não tinha nada. Eu fiquei na Bahia até ela conseguir alugar uma casa.

TMDQA!: Como era a vida dos seus pais na Bahia?

Minha mãe é muito guerreira. Ele teve minha irmã mais velha com 15 anos. O bebê não era do meu pai, era de outro cara. Ela sofreu muito com isso. Imagina: 15 anos, grávida e cidade pequena. Já meu pai é cheio de histórias. Nós brincamos que ele é gangster, porque, lá onde morávamos, ele tinha a fama de brigão. Ninguém mexia com ele. Hoje é engraçado falar disso, mas na época era foda.

TMDQA!: Como surgiu sua paixão pelo rap?

A minha paixão pelo rap veio do meu pai, mas também do meu tio. Meu pai não vivia muito comigo. Quando vim para São Paulo, minha tia começou a namorar com o cara que virou meu tio. Ele me buscava na escola e sempre tocava rap no carro dele, tipo Sabotage.

TMDQA!: E quando foi o seu primeiro contato com o trap?

Não lembro exatamente, mas foi pela internet, porque onde eu estudava ninguém escutava trap, só funk. Eu era tipo o esquisitinho. Quando tentei mostrar trap para os moleques, eles mandaram um “sai daqui, mano. Trap? Tá doido?”.

TMDQA!: Você lembra qual foi a música ou o artista?

Acho que foi MC Igu. Já o primeiro show de trap que fui foi do Raffa Moreira, em 2017. De trap no Brasil, mano, eu entendo, porque eu acompanhei os caras desde o começo.

Ryu começou a fazer beats de traps aos 13 anos, na zona leste de São Paulo. Em 2020,
iniciou sua carreira como cantor. O trapper alcançou o sucesso quando lançou o seu
primeiro mixtape, Essa é a Vida de um Corredor (EVDC), em 2023.

O primeiro álbum,SEMRÉH, saiu no ano passado. O título é o nome Hérmes, deus da velocidade na mitologia grega, ao contrário. A versão deluxe do projeto tem a participação dos baianos Duquesa e Teto.

TMDQA!: No SEMRÉH, você faz questão de dizer que é baiano. Por quê?

Quando cheguei aqui, vi muito preconceito dos paulistas. A galera fazia piadas com um fundo de preconceito. E não é só com pessoas da Bahia, é com qualquer um do Nordeste. A maioria dos meus ouvintes são de São Paulo. Quero que eles vejam que ser baiano é foda, não é nada disso que falam por aí: “baiano é preguiçoso”, “baiano é feio”, “baiano não sabe se vestir”… É minha forma de tentar quebrar estereótipos.

TMDQA!: Você acha que ser baiano fez você se destacar no trap?

No começo, eu fazia música tentando imitar os caras de São Paulo, e não dava certo. Só funcionou quando comecei a usar minha própria voz, meu sotaque, minhas referências. Percebi que ser eu mesmo fazia diferença. Também me inspirou o álbum ÉTPM, do Jovem Dex. Foi a primeira vez que vi o Nordeste tão bem representado no trap, e pensei: “Mano, esse é o caminho. Dá pra ser diferente e foda ao mesmo tempo”. Quando perdi a vergonha de ser baiano e comecei a usar isso nas minhas músicas, deu certo.

TMDQA!: Como foi para você conquistar o sucesso?

Eu sempre fui meio invisível. Sentia que não tinha voz, que eu era só mais uma pessoa, sem nada especial. Quando comecei a fazer música e o bagulho começou a dar certo, foi como se eu tivesse encontrado meu lugar. Eu comecei a ter autoestima e a me achar mais da hora.

TMDQA!: Você ainda tem algo da Bahia?

Mano, eu tenho um uniforme do Esporte Clube Bahia que era do meu vô. Ele me deu
quando eu era criança. É um bagulho que eu guardo com carinho… O sotaque, acho que
perdi. Eu sofri muito bullying em São Paulo. Para não ser zoado, comecei a falar igual os
moleques da minha sala.

O sotaque nunca foi uma questão na minha carreira, mas zoeira sempre rola. Muita gente me zoou por causa do jeito que eu falei “Warner” na música SUV. Hoje eu levo de boa, mas na infância me incomodava.

Na verdade, escondido no meio de gírias paulistas, Ryu ainda carrega uma característica do sotaque baiano: o “r” aspirante, que ocorre quando o som é produzido com uma aspiração. Na maioria de suas músicas, o fonema está presente.

TMDQA!: Em “Eles me Odeiam”, você diz: “Eles estão chateados porque o baiano manda em SP”. O que te motivou a fazer a canção?

A música é sobre essa parada de eu ser de outro lugar, tá ligado? De eu ter chegado “do nada” e estar fazendo mais sucesso que alguns caras de São Paulo. As minas na música, especialmente a Duquesa, por ser da Bahia, representam bem a ideia. Para os outros caras é mais fácil e, mesmo assim, eles não conseguiram chegar no mesmo patamar que nós Quando fiz a música, já sabia que queria chamar a Duquesa.

TMDQA!: Você, Duquesa e Teto já conversaram sobre serem do interior da Bahia?

Eu conhecia o trabalho da Duquesa há um tempo, antes mesmo de eu ganhar mídia. Nós crescemos juntos na cena, subindo de pouquinho a pouquinho, e eu sabia que ela era baiana também, então tinha que rolar essa parceria. Também sinto muita identificação com o Teto. Ele é de Jacobina. Minha mãe já morou lá quando era mais nova, e, quando descobri isso, troquei ideia com ele.

TMDQA!: Desde que você se mudou de Vitória da Conquista, chegou a visitar a cidade?

Mano, eu não voltei lá ainda, acredita? Já fui para vários lugares da Bahia, mas para Conquista não. Não tinha dinheiro e tempo para ir. Agora que estou fazendo música, tô vendo de voltar.

TMDQA!: Qual sua parte favorita da Bahia?

Tenho um carinho especial pelos meus fãs de lá, porque sinto que eles se identificam muito comigo. Os caras são muito fãs mesmo. Eles curtem o show de um jeito diferente, até mais do que as pessoas de São Paulo. A Bahia é sempre mais animada, as pessoas são mais vivas.

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